Carnificina em cadeias mostra que jeitinho das autoridades para lidar com massa carcerária tem limite

Quando se falava em rebeliões em penitenciárias e cadeias, os olhos do público se voltavam para o sudeste. A memória mais drástica é ainda de 1992: os 111 mortos no Carandiru (SP). Quando o assunto era facções, tráfico de drogas e disputa de território, a atenção se voltava para o Rio de Janeiro. O Comando Vermelho habita o imaginário de muita gente há tempos, mas agora a Amigos dos Amigos (ADA) vem ganhando projeção nacional ao se aliar à facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) e desencadear um caos sanguinário no norte e no nordeste do país. Mas afinal, por que Rio de Janeiro não entrou nesta onda?

Ao ignorar solenemente o estabelecido na Lei de Execução Penal (LEP) e escolher lidar com “jeitinhos”, os Estados se fazem responsáveis pela crise generalizada no sistema Penitenciário. A precariedade das estruturas das prisões e as reformas porcas feitas a toque de caixa – mas com orçamentos milionários – permitem rebeliões constantes, como as que aconteceram em 2014, 2015 e 2016 no Rio Grande do Norte. Já no Rio de Janeiro, as autoridades entenderam a bomba que tinham nas mãos e começaram a triar seus presos ainda na década de 80, separando-os por facções no momento em que entravam em Bangu, hoje Complexo de Gericinó. A última grande rebelião em Bangu foi em 2002, naquele dia que mais tarde ficou conhecido como o “nosso 11 de setembro“. Quatro pessoas morreram.

“A administração penitenciária do Rio de Janeiro sempre foi muito criticada por manter presos de facções diferentes em lugares diferentes. Mas isso, historicamente, tem contribuído para que o Rio praticamente não tenha rebeliões. Motins no Rio são pontos fora da curva. Essa tensão permanente é muito neutralizada com essa preocupação de deixar presos separados”, explica Julita Lemgruber, que foi diretora-geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro entre 1991 e 1994.

Nem da Rocinha e Celsinho da Vila Vintém – ambos presos na Penitenciária Federal de Rondônia – acordaram de apoiar a aliança entre PCC e ADA. Sassá, preso em Mossoró, discordou, e a facção rachou. Agora, a Amigos dos Amigos está dividida em ADA/PCC e “ADA Linho”.

Quando nasceu a Falange Vermelha, antigo nome do Comando Vermelho, no fim da década de 70, os presos pleiteavam melhores condições nas cadeias: que não estivessem amontoados como animais, que a comida não fosse uma lavagem apta para porcos, que seus familiares não fossem esculachados durante as visitas etc. Passaram-se anos e, em 1993, nasceu o PCC com as mesmas demandas. E aqui estamos nós, em 2017, não atendendo a estes mesmos e antigos pleitos, previstos na Lei de Execução Penal (LEP) e ignorados pelo poder público.

Negar os problemas é ajudar o crescimento das facções

Tão ignorada quanto é a existência destas facções. Durante muito tempo governos negaram a existência de grupos que controlam as cadeias públicas e, com isso, os fortaleceram e permitiram que crescessem assustadoramente. Detentos em presídios de segurança máxima enviam ordens e continuam controlando seus negócios informais mesmo de dentro de suas celas.

E foi assim, de dentro do sistema penitenciário, que o Primeiro Comando da Capital rompeu com o Comando Vermelho e se aliou aos Amigos dos Amigos há alguns meses. Antônio Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, e Celso Luiz Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém – ambos presos na Penitenciária Federal de Rondônia – acordaram de apoiar a aliança entre PCC e ADA. Edmílson Ferreira dos Santos, o Sassá, preso em Mossoró, discordou, e a facção rachou. Agora, a Amigos dos Amigos está dividida em ADA/PCC e “ADA Linho”.

“Enquanto o Estado se omitir e não observar a Lei de Execuções Penais (LEP) está aberto o espaço para lideranças de grupos, sejam estes quais forem, controlarem a massa carcerária. Estes grupos que vão atender as necessidades mais básicas dos presos.”

Linho (Paulo Cesar Silva dos Santos) é uma lenda dentro da facção, e era uma das maiores lideranças da ADA em liberdade no início dos anos 2000. Sobre ele, pairam muitas histórias. Dizem que ele morreu em São Paulo, mas como ninguém viu o corpo, há quem creia que ele ainda está por aí. O primeiro racha da ADA se deu pouco depois do sumiço de Linho. Da costela da ADA nasceu o Terceiro Comando Puro (TCP) que rompeu com antigo Terceiro Comando (TC).

Agora, não se sabe ao certo o número de detentos foram “batizados” pelo PCC. Eram cerca de 480 membros da então ADA em Bangu, mas os vindos dos Complexos da Pedreira e Caju, ambos na Zona Norte do Rio, debandaram. Nem da Rocinha tem contato com o PCC desde 2011.

Esse racha mudou a configuração também no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. ADA/PCC estão custodiados no Bangu 4 e o “ADA Linho” em Bangu 10. Os que mudaram de lado começaram a ser transferidos de Bangu 4 há cerca de seis meses. As informações foram confirmadas por fontes próximas a membros do PCC e da ADA que não quiseram se identificar por questões de segurança. Questionada pelo The Intercept Brasil sobre o racha, a Secretaria de Assuntos Penitenciários do Rio de Janeiro disse que não daria informações sobre o fato pelo mesmo motivo.

Apesar de toda essa movimentação e do volume de presos que agora têm aliança com o PCC, cabeças não rolaram no Rio de Janeiro. Este ano, até o momento, um único preso morreu em Bangu. Acusado de estupro, Diego Maradona Silva estava no “seguro” – cela isolada dos pavilhões – e foi encontrado morto, “com sinais de morte violenta”, no dia 16.

Lemgruber destaca que rebeliões e motins como os que estão ocorrendo no norte e no nordeste do país só são possíveis porque o Estado brasileiro não se faz presente nas prisões. “Enquanto o Estado se omitir e não observar a Lei de Execuções Penais (LEP) está aberto o espaço para lideranças de grupos, sejam estes quais forem, controlarem a massa carcerária. Estes grupos que vão atender as necessidades mais básicas dos presos, desde itens de higiene a atendimento às famílias, pagamento de defesa etc”.

A Secretaria de Assuntos Penitenciários não respondeu a nenhuma pergunta feita pelo The Intercept Brasil sobre o racha da ADA, a triagem dos detentos e sobre o impacto da falta de pagamento dos agentes penitenciários na segurança dos presídios. Porém, no último dia 12, o secretário de Segurança, Roberto Sá, disse ao El País que “O próprio sistema do Rio, tendo três facções, já acautela os presos de forma separada. Nosso diferencial com outros Estados é que aqui eles se matam nas ruas, pela sua lógica expansionista”. Ele disse ainda se preocupar com o poder bélico e financeiro e com a capilaridade do PCC. Além de ADA, CV e TCP, os presídios do Rio ainda têm alas para os grupos de milicianos e o Povo de Israel, alocados na área “segura” e que abriga presos que não pertencem a facções. Este grupo não atua no tráfico, mas na extorsão via ligações feitas de dentro do presídio e que simulam sequestro. Geralmente são evangélicos, ex-policiais, pessoas que traíram sua facção ou que nunca foram filiadas a uma. Um muro os separa do resto dos detentos.

Rio Grande do Norte comete erros primários ao tratar com facções

No Rio do Grande do Norte, por exemplo, os agentes tentam fazer uma triagem dos presos, mas dentro da penitenciária, esse cuidado se perde devido à precariedade das instalações. A Penitenciária Estadual Dr. Francisco Nogueira Fernandes (Alcaçuz) tem cinco pavilhões. Quatro deles eram ocupados pelo Sindicato do Crime do RN (SDC), aliado da Família do Norte (FDN), e um pelo PCC. Mas, devido a rebeliões em 2015 e 2016, quando os cadeados que isolavam os presos em suas alas foram estourados, o acesso de um pavilhão a outro é fácil.

Inmates are seen during confrontation between gangs at Alcacuz Penitentiary Center near Natal in Rio Grande do Norte, Brazil on January 19, 2017.Fresh fighting erupts among inmates at Brazilian jail. / AFP / Andressa Anholete (Photo credit should read ANDRESSA ANHOLETE/AFP/Getty Images)

Penitenciária de Alcaçuz em meio ao caos, no dia 19 de janeiro de 2017

Foto: Andressa Anholete/AFP/Getty Images

A Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania do RN informou ao The Intercept Brasil que não há barreiras físicas que separem os pavilhões. Sobre a falta de reparos em 2016, disse que “a decisão da Secretaria de Justiça foi por buscar mais investimentos em pessoal e garantir que a aplicação do dinheiro público em reformas não fosse novamente desperdiçada”.

Quinze dias depois que presos do PCC foram mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, os presos da facção paulista decidiram dar o troco no Rio Grande do Norte. Fora a facilidade estrutural e a superlotação (atualmente, há mais de mil presos em um lugar que tem capacidade para 620), as decisões políticas erráticas colaboram para o caos.

No último dia 18, o governo do Rio Grande Norte tentou transferir para Alcaçuz 116 detentos vindos de Natal. A medida só não se concretizou porque a juíza corregedora de Alcaçuz impediu. No mesmo dia, 220 presos do SDC foram transferidos para Penitenciária Estadual de Parnamirim, a pouco mais de 30 quilômetros de Alcaçuz. O governador fez o contrário do indicado pelo setor de inteligência, que recomendava que a minoria filiada ao PCC fosse retirada de Alcaçuz e não os membros do SDC, o que apenas deixaria os lados com número próximo de detentos filiados de cada lado.

Em nota, a presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários do RN (Sindasp-RN) afirmou que o Estado não deve ceder aos interesses da iniciativa privada e deve assumir o total controle do sistema penitenciário para, então, conseguir mudar as políticas públicas de segurança.

“É preciso investir em uma boa gestão pública, na reestruturação das unidades, na valorização dos operadores e oferecer condições de trabalho e de segurança adequadas. Ao invés de repassar milhões para uma empresa privada fazer a gestão de um presídio e o resultado ser igual ou pior ao caos que já temos, o Estado precisa investir em sua própria estrutura, precisa mostrar sua força. Só assim iremos sentir a verdadeira mudança”, frisou.

A situação deplorável do não cumprimento da Lei de Execuções Penais é a receita da desgraça. “Tem unidades prisionais em São Paulo onde as presas usam miolo de pão como absorventes. Agora, por exemplo, já temos informação de as unidades femininas estão se identificando com facções. Não devia ser surpresa pra ninguém”, contou Julita.

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