#Democratas, Trump e a perigosa recusa de entender as lições do Brexit

Os paralelos entre o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), em junho, e o chocante resultado da eleição presidencial dos EUA vencida por Donald Trump são enormes. As elites (fora dos círculos populistas de direita) se uniram fortemente contra os dois movimentos, independentemente de suas posições ideológicas. Os apoiadores do Brexit e de Trump foram qualificados de primitivos, estúpidos, racistas, xenofóbicos e irracionais pela narrativa da mídia dominante (seja justificada ou injustificadamente).

Em ambos os casos, jornalistas que passaram o dia conversando no Twitter e se reunindo com seus grupos sociais em círculos exclusivos nas capitais dos países — reafirmando constantemente sua sabedoria em um círculo vicioso interminável — estavam certos da vitória. Depois dos resultados, as elites que tiveram suas certezas destroçadas investiram todas as suas energias em responsabilizar tudo e todos que viam pela frente, exceto a si mesmos, ao mesmo tempo que reafirmavam seu desmedido desprezo por aqueles que os contestaram, recusando-se a analisar as verdadeiras causas do voto insubordinado.

É fato inquestionável que instituições predominantes com autoridade no Ocidente, por décadas, tentaram de forma incansável e indiferente reduzir o bem-estar econômico e a segurança social de dezenas de milhares de pessoas. Enquanto a elite se esbaldava em globalização, mercados livres, apostas financeiras em Wall Street e guerras intermináveis (guerras que enriqueceram seus autores, mas enviaram pobres e setores marginalizados da sociedade para arcar com seus fardos), também ignorava completamente as vítimas de sua gula, exceto quando as vítimas reclamavam muito —causando tumultos — e, portanto, eram classificadas de forma pejorativa como trogloditas que mereciam perder no glorioso jogo da meritocracia global.

O recado foi ouvido em alto e bom som. As instituições e setores elitizados que passaram anos gozando, difamando e saqueando grande parte da população — enquanto acumulavam um histórico de fracassos, corrupção e destruição — estão surpresos por suas ordens e imposições terem sido ignoradas. Mas seres humanos não obedecem a pessoas que consideram ser os principais responsáveis por seu sofrimento. Farão exatamente o oposto: os desafiarão e tentarão impor castigos como forma de retaliação. As ferramentas usadas para a retaliação foram o Brexit e Trump. Esses são seus agentes, enviados em uma missão de destruição. Destruição de um sistema e de uma cultura que consideram, com razão, estarem tomados por corrupção e, acima de tudo, desprezo por eles e por seu bem-estar.

Logo após o referendo que decidiu pelo Brexit, escrevi um artigo detalhando essa dinâmica que não vou repetir aqui, mas espero que os interessados o leiam. O título deixa claro o cerne do artigo: “O Brexit é apenas a mais recente prova da insularidade e do fracasso das instituições ocidentais” Essa análise foi inspirada por um texto curto, porém perspicaz, sobre o Brexit no Facebook e, agora, mais relevante do que nunca, de Vincent Bevins, do Los Angeles Times, que escreveu que o “Brexit e o Trumpismo são respostas incorretas para perguntas legítimas que as elites urbanas se recusaram a responder por 30 anos”; em particular, “desde os anos 80, as elites de países ricos exageraram, levando todos os lucros e tapando os ouvidos quando os outros falavam, e agora estão horrorizadas assistindo à revolta dos eleitores”.

Aqueles que se removeram da câmara de eco de autoafirmação da elite pró-Clinton não tiveram dificuldade em perceber os sinais de alerta enviados pelo Brexit. Esses dois trechos de uma entrevista que dei ao site Slate em julho deste ano — aqui e aqui — resumem esses graves perigos: as elites formadoras de opinião estavam tão unidas, de forma extremamente incestuosa, e tão distantes da população que decidiria essas eleições, sentiam tanto desprezo por ela, que não foram capazes de observar as tendências a favor de Trump e, além disso, aceleraram essas tendências involuntariamente com seu próprio comportamento.

Como quase todo mundo que viu as pesquisas e modelos dos autointitulados experts em dados da mídia, eu acreditava que Clinton venceria, mas as razões pelas quais ela poderia perder não eram difíceis de se ver. As luzes de atenção piscavam há muito tempo, mas em lugares desagradáveis, cuidadosamente evitados pelas elites. As poucas pessoas que, acertadamente, foram a esses lugares, como Chris Arnade, puderam vê-las e escutá-las claramente. A contínua falha em dar atenção a este intenso mas invisível sofrimento garante o seu crescimento e fortalecimento. Este foi o último parágrafo de meu artigo, em Julho, sobre as consequências do Brexit:

“Ao invés de reconhecer e corrigir suas falhas fundamentais, [as elites] estão dedicando suas energias para demonizar as vítimas da sua corrupção, a fim de deslegitimar as queixas e, assim, aliviarem-se da responsabilidade de abordá-las de maneira significativa. Esta reação serve apenas para reforçar a percepção de que estas instituições da elite são fatalmente egoístas, tóxicas e destrutivas e, portanto, não podem ser reformadas, devem ser destruídas. Isso, por sua vez, só assegura que haverá muitos outros Brexits, e Trumps, em nosso futuro comum.”

Para além da análise do Brexit, há três novos pontos sobre os resultados de ontem que eu quero enfatizar, já que são únicos nas eleições dos EUA de 2016 e, mais importante, ilustram as patologias de elite que levaram a tudo isso:

 

(1) Os Democratas já começaram a se agitar tentando culpar a qualquer um – exceto eles mesmos – pela derrota sofrida por seu partido na noite passada. Você já conhece a previsível lista de seus bodes expiatórios: Rússia, WikiLeaks, James Comey, Jill Stein, Bernie Bros, veículos de mídia, meios jornalísticos (incluindo, talvez com especial destaque, The Intercept) que pecaram ao noticiar negativamente sua candidata Hillary Clinton. Qualquer um que ache que o ocorrido em lugares como Ohio, Pensilvânia, Iowa e Michigan pode ser atribuído a qualquer item dessa lista está se afogando em uma ignorância autoprotetora tão profunda que é impossível expressar em palavras.

Quando um partido político é derrotado, a principal responsabilidade pelo fato (como conforme defendi após a derrota da esquerda nas eleições municipais no mês passado) pertence a uma entidade: o próprio partido. É tarefa do partido e do candidato, e de ninguém mais, persuadir os cidadãos a apoiá-los e encontrar os meios para fazê-lo. Na noite de ontem, os Democratas falharam flagrantemente em realizar esse trabalho, e qualquer artigo de pensamento liberal ou comentário pró-Clinton que não comece e termine com seu próprio comportamento não tem nenhum valor.

Em suma, os Democratas decidiram conscientemente nomear uma candidata extremamente impopular, muito vulnerável, envolvida em escândalos de corrupção, que era amplamente considerada como protetora e beneficiária dos piores componentes da corrupção da elite. É surpreendente que aqueles de nós que tentaram reiteradamente alertar os Democratas de que a nomeação de Hillary Clinton era uma grande e assustadora aposta, que toda a evidência empírica mostrava que ela poderia perder para qualquer um e que Bernie Sanders seria um candidato muito mais forte, especialmente nesse clima, estejam agora sendo culpados pelas mesmas pessoas que insistiram em ignorar todos os dados e nomeá-la mesmo assim.

Mas isso são apenas sinais de deslocamento da culpa e de autopreservação. Muito mais significante é o que tudo isso mostra sobre a mentalidade do Partido Democrata. Reflita sobre a pessoa que eles indicaram: alguém que, quando não estava jantando com monarcas sauditas e sendo festejada em Davos por tiranos que lhe deram cheques de milhões de dólares, passou os últimos anos percorrendo gananciosamente os corredores dos bancos de Wall Street e de grandes corporações enriquecendo com honorários de 250 mil dólares por discursos secretos de 45 minutos, embora já fosse extremamente rica com o lucro de livros, e embora seu marido já tivesse ganhado milhões de dólares jogando o mesmo jogo. Ela fez tudo isso sem a menor preocupação aparente de como isso alimentaria todas as percepções e os ressentimentos a seu respeito e do Partido Democrata, como corruptos, protetores do status quo, ferramentas aristocráticas dos ricos e poderosos: precisamente o pior comportamento possível para esta era globalizada pós-crise econômica de 2008 e de indústrias destruídas.

Não é necessário dizer que Trump é um sociopata vigarista obcecado com seu enriquecimento pessoal: o oposto de um verdadeiro defensor dos oprimidos. Isso é demasiado óbvio para ser debatido. Mas, como Obama fez poderosamente em 2008, ele pôde, com credibilidade, concorrer como um inimigo do sistema de Washington e de Wall Street que prejudicou tantas pessoas, enquanto Hillary é sua leal guardiã, sua beneficiária consumada.

Trump jurou destruir o sistema que as elites amam (por um bom motivo) e as massas odeiam (por motivos igualmente bons), enquanto Clinton jurou gerenciá-lo de maneira mais eficiente. Isso, como o indispensável artigo de Matt Stoller para The Atlantic documentou três semanas atrás, é a escolha conivente que o Partido Democrata fez décadas atrás: abandonar seu apelo popular e se tornar o partido dos tecnocratas proficientes, dos gerentes pouco benevolentes do poder da elite. Essas são as sementes de cinismo e interesse próprio que eles plantaram, e agora a colheita brotou.

É claro que há diferenças fundamentais entre a versão de “mudança” de Obama e a de Trump. Mas em um nível alto – onde essas mensagens são muitas vezes assimiladas – os dois eram percebidos como forças externas em missão para derrubar as estruturas da elite corrupta, enquanto Clinton era percebida como devota ao fortalecimento delas. Essa foi a escolha dos Democratas – satisfeitos com as autoridades do status quo, acreditando em sua bondade –, e qualquer tentativa honesta de encontrar o autor principal da derrota de ontem começará com um grande espelho.

 

(2) Que o racismo, a misoginia e xenofobia estão no interior de todos os setores dos Estados Unidos é indiscutível mesmo a partir de um rápido olhar em sua história, antiga ou recente. Há motivos pelos quais todos os presidentes até 2008 sejam brancos e todos os 45 presidentes eleitos sejam homens. Não há dúvida de que essa patologia teve um papel substancial no resultado de ontem. Mas este fato responde a muito poucas questões, e levanta outras cruciais.

Para começar, deve-se confrontar o fato de que Barack Obama não apenas foi eleito duas vezes, mas está prestes a deixar o cargo como um presidente muito popular: agora com avaliação mais positiva que a de Reagan. Os EUA não eram menos racistas e xenófobos em 2008 e 2012 do que são agora. Mesmo democratas incondicionais que gostam de classificar seus oponentes como fanáticos agora reconhecem que uma análise mais complicada é necessária para entender o resultado da eleição. Como disse Nate Cohn, do New York Times: “Clinton sofreu suas maiores derrotas em lugares onde Obama era mais forte entre eleitores brancos. Não é simplesmente uma história de racismo”. Matt Yglesias reconheceu que a alta aprovação de Obama é inconsistente com a representação dos EUA como um “condado envenenado pelo racismo”.

As pessoas frequentemente falam sobre “racismo/sexismo/xenofobia” versus “sofrimento econômico” como se fossem totalmente distintos. É claro que há elementos substanciais de ambas as coisas na base eleitoral de Trump, mas as duas categorias estão intimamente ligadas: quanto mais sofrimento econômico as pessoas enfrentam, mais irritadas ficam, e se torna mais fácil direcionar sua insatisfação a bodes expiatórios.

O sofrimento econômico muitas vezes alimenta o fanatismo. É verdade que muitos dos eleitores de Trump são relativamente mais ricos e que muitos dos mais pobres da nação votaram em Clinton, mas, como Michael Moore advertiu, essas partes do país que foram as mais devastadas pelo livre comércio e pelo globalismo – Pensilvânia, Ohio, Michigan, Iowa – estavam lotadas de raiva e “veem Trump como um possível coquetel molotov humano que eles gostariam de lançar no sistema para explodi-lo”. Estes são os lugares que foram decisivos na vitória de Trump. Como disse Tim Cartey, do Washington Examiner: “Eleitores brancos rurais de baixos rendimentos da Pensilvânia votaram em Obama em 2008 e em Trump em 2016, e sua explicação é a supremacia branca? Interessante”.

Acabar com estas desigualdades estruturais é, há muito tempo e ainda hoje, um desafio central para os EUA. Mas uma maneira de garantir que essa dinâmica de bodes expiatórios perdure ao invés de sucumbir é continuar a abraçar um sistema que exclui e ignora uma grande parte da população. Hillary Clinton foi vista, com razão, como devota fiel, agente reverenciada e grande beneficiária deste sistema, e portanto não poderia ser vista como uma protagonista da luta contra ele.

 

(3) Durante as últimas seis décadas, e particularmente durante os últimos quinze anos da interminável guerra ao terror, ambos os partidos políticos se juntaram para construir um sistema de poder autoritário, destrutivo e de caráter invasivo sem precedentes, acompanhado de um investimento desenfreado de autoridade no Poder Executivo para utilizá-lo. Como resultado, o presidente dos EUA comanda um vasto arsenal nuclear que pode destruir o planeta várias vezes; o mais letal e mais caro exército já desenvolvido na história da humanidade; autoridades legais que lhe permitem executar inúmeras guerras secretas ao mesmo tempo, prender pessoas sem o devido processo legal, e marcar pessoas (inclusive cidadãos americanos) para assassinato sem supervisão; agências domésticas de aplicação da lei construídas para parecer e agir como um exército paramilitar; um Estado penal crescente que permite a prisão mais facilmente que a maioria dos países ocidentais; e um sistema de vigilância eletrônica propositadamente projetado para ser onipresente e ilimitado, inclusive no território dos EUA.

As pessoas que vêm alertando sobre os sérios perigos que esses poderes representam têm sido desprezadas com base no argumento de que esses líderes que controlam o sistema são benevolentes e bem-intencionados. Portanto, eles recorreram à tática de incentivar as pessoas a imaginarem o que aconteceria se um presidente que consideram pouco benevolente chegasse ao poder. Esse dia chegou. Espera-se que essas circunstâncias, no mínimo, criem o ímpeto de que as linhas partidárias e ideológicas se unam para finalmente impor limites a esses poderes que nunca deveriam ser outorgados. Esse empenho tem de começar já.


Por muitos anos, os EUA — assim como o Reino Unido e outros países do ocidente — embarcaram em um rumo que praticamente garantiu o colapso da autoridade da elite e uma implosão interna. A invasão do Iraque, a crise financeira de 2008, a situação do sistema prisional e as guerras sem fim, os benefícios obtidos pela sociedade foram dirigidos quase que exclusivamente às instituições de elite, principais responsáveis pelo fracasso e às custas de todo o resto.

Era apenas uma questão de tempo para que tudo isso resultasse em instabilidade, reações e rupturas. Tanto o Brexit quando a eleição de Trump são sinais inequívocos desse resultado. A única questão é se estes dois eventos serão o ponto alto deste processo ou apenas o seu começo. E isso, por sua vez, será determinado se suas lições cruciais forem aprendidas – e verdadeiramente internalizadas – ou ignoradas em favor de campanhas de autodesobrigação para direcionar a culpa aos outros.

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