Milhares de jornalistas “paraquedistas” estão aterrizando na cidade pela primeira vez para cobrir os Jogos e vão embora logo depois — sem dúvida, entre eles estão muitos profissionais de alto nível, mas vários estão chegando sem um pingo de proficiência em português e sem nenhuma noção sobre a cidade ou o país além dos clichés de Tropa de Elite e Cidade de Deus.
Os problemas atuais na cidade são inegáveis para quem não é patrocinador oficial do evento, mas dá para até sentir um pouco de alívio se for compará-los com a visão quase-apocalíptica proposta por membros da imprensa estrangeira (lembrando que os Jogos nem começaram ainda).
Como Cerianne Robertson, coordenadora de pesquisa de Comunidades Catalíticas, notou, o jornal australiano Herald Sun noticiou que 75% da população carioca mora em favela.
A estatística seria chocante, se não fosse completamente incorreta. De acordo com o Instituto Pereira Passos, o certo é 23%.
Outro alerta para os “dados estranhos” que podem ser lançados neste mês foi dado no Twitter pelo repórter escocês Andrew Downie, que cobre o Brasil há anos.
Um vídeo que acompanha um texto do USA Today chamado “Cracolândias: Onde abuso de drogas encontra as Olimpíadas” declarou, sem nenhuma preocupacao em checar o dado, que “40% das pessoas de favelas cariocas usam crack”. Isto, baseado na fala de um pastor que mantém uma obra social na “cracolândia” do Jacarezinho. No vídeo, o repórter pode ser ouvido conversando em inglês com usuários de crack através de um tradutor.
O número, alarmante, não é confirmado por pesquisadores do tema. “O dado de 40% me parece matematicamente impossível”, afirmou Francisco Inácio, coordenador da “Pesquisa Nacional sobre o uso de crack”, publicada pela Fiocruz, em entrevista ao The Intercept. A estatística mais fidedigna dá conta de que 0,56% da população da Regiao Sudeste do país usa crack.
“As pessoas não fazem por mal, mas é comum estimarem errado. Não são treinadas para isso”, acrescenta Inácio, notando que dados errados saem na imprensa a todo momento, principalmente sobre a Zika. No inverno, o mosquito não circula mais da mesma forma e o Rio de Janeiro não está mais em uma situação epidêmica.
Vários especialistas consideram o risco mínimo ou “insignificante”, mas, mesmo assim, alguns atletas chegaram a cancelar suas viagens para o Rio, citando o risco de contrair vírus. Com certeza, inúmeras matérias e artigos como “Cancelem as Olimpíadas: A ameaça potencial da virus Zika apresenta um risco grande demais”, publicado em U.S News & World Report, não ajudou.
Mas a maioria das falhas de cobertura serão mais banais e previsíveis, como a reportagem embaixo chamado “Uma visita à zona proibida do tráfico do Rio” por o correspondente do Beirute de CNN, Nick Paton Walsh.
Nele, o repórter faz um rolê com um traficante, visita uma boca de fumo, mostra uma arma pesada ameaçadora. O roteiro da reportagem de dois minutos e 35 segundos, quase idêntico de dezenas de outros feito por correspondentes internacionais faz 20 anos, define as favelas cariocas exclusivamente pelo trafico, caraterizando os bairros como apenas selvagem buracos de pecados exóticos e violência aleatória — sempre sem contexto. “Nós passamos, fora da câmera, num mundo enlouquecido e avulso, composto de festas de rua, tráfico de céu aberto, cheio de adolescentes em um mundo sem regras nem um futuro. O resto do Rio acelera passado este ponto, levando ninguém daqui”, Walsh explica com voz agitada encima de trilha de som de funk e a imagem de um fuzil em frente de o trem passando. O preconceito é tão denso e auto-evidente que nem vale a pena desconstruir passa a passa.
Existem muitas razões legítimas para desdenhar ou querer evitar o Rio-2016, mas o efeito coletivo de todo esse trabalho é apenas alimentar o medo e desinformação e aleatoriamente reduzir interesse internacional em visitar o Rio.
Sign up for The Intercept Newsletter here.
The post Mais uma praga desce no Rio: A mídia internacional “paraquedista” appeared first on The Intercept.
from The Intercept ift.tt/2aGOV1i