#O racismo por trás das grades nos EUA

Eu não gosto da prisão. Ninguém deveria gostar.

O esforço para lidar com o tormento de ser encarcerado em uma prisão federal é constante e extenuante. Identifico-me com o personagem de Shakespeare, Richard II, quando lamenta seu próprio empenho em se ajustar ao confinamento. “Tenho estudado como poderia comparar a prisão onde vivo com o mundo lá fora”, reflete o prisioneiro fictício. Faço o que posso para resistir à ideia de que a prisão é um reflexo de nossa sociedade, mas os paralelos são inevitáveis. Ao contrário de Richard II, meus “estudos” não são exatamente uma comparação, mas uma infeliz constatação.

A partir do momento em que cruzei a fronteira entre a liberdade e o encarceramento, por ser acusado e condenado por um júri de vazar informações confidenciais para um repórter do New York Times, não precisei mais ser lembrado de que havia perdido a condição humana. Prisões e sua “abordagem uniforme” aos detentos não foram planejadas para reconhecer o valor de uma pessoa. A ênfase é colocada na remoção e na categorização. Presos não são pessoas. Somos nossas infrações. Na prisão onde vivo, há estupradores, pedófilos e condenados por envolvimento com armas e drogas, entre outros. Levando em conta as acusações e condenações que me trouxeram até aqui, não sei exatamente em que categoria me encaixo. Mas isso não importa. Há uma categoria mais ampla a qual pertenço e que, infelizmente, faz parte da realidade da prisão que “comparo com o mundo”. Não sou apenas um presidiário. Sou um presidiário negro.

Ter conhecimento de uma experiência e vivenciar uma experiência são coisas completamente diferentes. Antes de ser preso, minha visão sobre a prisão era baseada, em parte, na representação feita em filmes, programas de TV e livros que todos os americanos conhecem. Infelizmente, quando criança, ouvi inúmeros testemunhos, em primeira mão, sobre a vida na prisão de conhecidos que a viam com certa banalidade. Eu já esperava encontrar uma separação de etnias — de acordo com alguns relatos, a segregação étnica era “necessária” — porque havia visto, lido e ouvido que era assim. No entanto, minha expectativa e ingenuidade me impediram de me preparar para viver essa realidade na pele.

Eu não precisei aprender as regras da sociedade carcerária, sobretudo no que diz respeito à segregação racial, porque estão extremamente enraizadas em tantos aspectos da vida em cárcere que o respeito a elas é instintivo. Mesmo que não haja uma determinação oficial, aqui dentro, eu sou a cor de minha pele. Sempre que, tomado por meu persistente idealismo, me recuso a reconhecer minha categorização étnica e questiono ser submetido a ela, os outros detentos retrucam de forma unânime: “Cara, a prisão é assim”.

Essas diferenciações são mantidas quando assistimos à televisão, já que nem mesmo essa atividade ocorre de forma integrada na prisão. Não sou bem-vindo nas salas de TV de “brancos”, “hispânicos”, ou “indígenas”. Por isso, passo grande parte do meu tempo na sala de TV de negros. A segregação não cria vantagens ou desvantagens em termos de espaço, já que todas as salas têm uma ou duas mesas,  uma ou duas televisões com os mesmos canais e os mesmos pombos que entram ocasionalmente por engano.

Para mim, a sala de TV de negros é um retiro onde leio, escrevo, fico frustrado com Sudoku e escapo da dor cotidiana da vida na prisão. Porém, mesmo sendo um local de escape, sua existência me remete constantemente à forma como a separação baseada em questões raciais é absoluta, injustificada e nociva. É um reflexo dos EUA que existe por trás desses muros. Vejo coisas tristes na prisão, mas as coisas que vejo de dentro da prisão são piores ainda.

Desde junho, quando cheguei aqui, na própria sala de TV de negros, assisti ao assassinato com motivações racistas de paroquianos negros na Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel, em Charleston, e a exemplos rotineiros e intermináveis de cidadão negros, incluindo Philando Castile, em Minnesota, e Alton Sterling, em Louisiana, sendo vítimas de abuso policial ou sendo executados por oficiais da lei. Também assisti a reportagens mostrando policiais sendo assassinados de forma tão terrível quanto. A tristeza que me toma quando vejo o que está acontecendo lá fora já vinha me atormentando antes de me tornar um detento. Quando entrei na prisão, ainda estava abalado pela morte de Michael Brown, na região de Saint Louis, que tenho orgulho de chamar de minha casa.

Assistir a essas tragédias de dentro da prisão, especialmente por estar na sala de TV de negros, foi uma experiência dolorosa. Durante os dias em que os assassinatos estavam sendo cobertos pela mídia e os comentários em canais de notícia eram constantes, ambas as TVs estavam permanentemente ligadas no assunto. Com o desenrolar dos eventos nos noticiários, a sala de TV foi tomada por um estranho silêncio que me chamou a atenção. Além do silêncio inquietante, havia um ar de frustração e uma conformidade palpável vindo de meus companheiros, mas também de mim. Eu, por exemplo, não sabia o que dizer. Esse silêncio foi acentuado por outra pergunta incômoda para a qual eu não tinha uma resposta, sobretudo, por estar na prisão: O que eu, e os outros que estão aqui, podemos fazer? Uma possível solução em forma de comentário veio de um dos meus colegas da sala de TV, que foi tão eficiente para quebrar o gelo, quanto para definir onde eu estava e ao que estava assistindo. “Cara, os EUA são assim”, disse ele.

Eu não consigo, e me recuso a aceitar esse ponto de vista, portanto queria e precisava confirmar que, fora da sala de TV de negros e além dos muros da prisão, o resto do país também estava inconformado com a situação. Arrisquei sair de nossa sala de TV para observar a repercussão da notícia nas outras salas. Com a desculpa de ir à máquina de gelo — é engraçado como não podemos assistir à televisão juntos, mas podemos usar a mesma máquina de gelo —, passei pela sala de TV dos brancos. As TVs não estavam sintonizadas nos noticiários que falavam dos assassinatos. Uma delas estava na ESPN e a outra estava no programa COPS [Algo parecido com “Polícia 24 horas“]. Não cheguei a ir às salas de TV de hispânicos ou de americanos nativos (indígenas), mas ficou claro que os EUA da sala de TV de brancos não era o mesmo da sala de TV de negros, tanto na TV quanto na própria sala.

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Ilustração: Matt Rota para o The Intercept

Comparar a prisão com o mundo lá fora não é mais difícil do que comparar as salas de TV. A sala de TV de negros e a sociedade carcerária, que a possibilita e a perpetua, não me proporciona uma janela para entender os Estados Unidos — funciona como um espelho lamentável. Esse espelho reflete a realidade de que a segregação racial é, sobretudo de forma tácita, uma realidade extremamente americana. Os EUA que cada um vê e vivencia depende da sala de TV determinada por sua cor de pele.

Na prisão, observo esse ar de racismo latente e admissível, ao mesmo tempo, criando e sendo influenciado pela segregação racial. Na TV, vejo a mesmíssima mentalidade gerando trágicas consequências do lado de fora dos muros da prisão através do uso de perfis raciais por todo o país, leis eleitorais baseadas em aspectos étnicos, políticos estimulando tensões raciais em busca de votos, um sistema penal que aplica e executa a lei de forma desigual e muito mais.

Tais práticas, insensatas e extremamente americanas, fomentam e até mesmo encorajam a segregação racial, além de incitarem os riscos que as acompanham obrigatoriamente. É possível argumentar que o homicida da igreja de Charleston, os policiais que mataram cidadãos negros e os negros que assassinaram policiais agiram por conta de uma hostilidade alimentada pelo mesmo tipo de mentalidade que encontramos na prisão. Os acontecimentos a que assisti nos EUA do qual eu fazia parte são uma extensão natural e infeliz do que estou vivendo na prisão.

Pode me chamar de ingênuo ou de utópico. Terei orgulho em vestir qualquer uma das carapuças, porque ainda acredito neste país e naquilo que ele representa, mesmo estando dentro da prisão. Foi essa minha vivência dentro da prisão? Foi isso que vi de dentro da prisão? Não.

Para citar um mero exemplo, enquanto eu trabalhava para a CIA, ficou claro para mim que, de acordo com a forma com que a organização me tratava e com as palavras usadas para me definir, eu não era visto apenas como um americano servindo seu país, mas como um “negão”.

Mas meu sonho de país é muito mais perseverante do que a mentalidade das salas de TV da prisão. Há a América dos negros, a América dos brancos. Há muitas Américas. A grandeza e esperança desse país mora na igualdade consolidada por nossas diferenças, e não determinada por elas. A minha América não é uma prisão. Por enquanto, estou confinado na sala de TV de negros no Instituto Penitenciário Federal de Englewood, no Colorado. Quando eu estiver em liberdade, não quero me sentir passando de uma prisão para outra.

Jeffrey Sterling, ex-agente da CIA, cumpre uma pena de prisão de três anos e meio por vazar informações confidenciais para um repórter do New York Times. Sua autobiografia será publicada pela Nation Books.

Traduzido por Inacio Vieira

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