Em novembro de 2016, certamente o mesmo ZFG (“zero fucks given” – em português algo como “pouco me fodendo”) de personagens rejeitados pelo capitalismo ou em estado de escravidão corporativa ajudou a eleger Donald Trump — um presidente-troll, misógino e racista, que representa a maior ameaça ao status quo da democracia norte-americana em toda a sua história.
O escritor norte-americano H.L. Mencken escreveu em 1920: “À medida que a democracia é aperfeiçoada, o gabinete do presidente representa cada vez mais a alma do seu povo. Em algum grande e glorioso dia, a gente simples conquistará o verdadeiro desejo do seu coração e a Casa Branca será ocupada por um idiota narcisista, um imbecil completo”.
Este dia chegou. No entanto, explicar o que vivemos apenas pela ignorância ou delírio iconoclasta de Trump e seus seguidores, encarando esta vitória como um simples triunfo do white trash seria de um reducionismo exemplar.
Terremoto cognitivo e a matrix sendo desligada
Quem elege Trump, no fim das contas, é o descompasso provocado pelas forças políticas que apoiaram Hillary, as décadas em que a ganância de financistas e grandes corporações estiveram à frente dos interesses dos eleitores. Quem elege Trump é a forma como veículos de imprensa, jornalistas de sofá e celebridades de Hollywood distanciaram-se da realidade, ignorando o que acontece lá fora. A sua vitória contradiz a previsão, os editoriais e o apoio do mainstream da mídia internacional, provocando um verdadeiro terremoto cognitivo, quase como se estivéssemos vendo a“> matrix sendo desligada.
No fim das contas, o êxito eleitoral do populismo de direita antiestablishment nos Estados Unidos tem mais a ver com a agenda do socialista Bernie Sanders do que qualquer um dos militantes de ambos os lados estaria confortável em admitir. E é evidente que serão também contraditórias as consequências da ascensão de Trump – sua política externa poderá fazer a“> alegria de anti-imperialistas de esquerda e a desgraça dos neocons que orbitam ao redor dos Clintons.
Trump, por exemplo, já afirmou ser neutro em relação ao conflito entre Israel e a Palestina — depois voltou atrás de forma inconsistente. É possível que o cretino autor de “A arte da negociação” consiga a solução dos dois estados, algo como o Santo Graal da política externa internacional? Já entramos num terreno onde as surpresas não são mais uma surpresa.
Entre a avalanche de incertezas ao fim de uma eleição sem precedentes, a maior delas não diz respeito aos Estados Unidos, mas a todos nós. Este momento pode marcar o ponto final para o Império Gringo e sua Pax Americana. A partir deste 9/11 (11/9 para eles) começa um novo mundo onde a OTAN é severamente questionada pelo presidente dos Estados Unidos. O “great again” do trumpismo renega explicitamente o papel de xerife do mundo, o que promete deslocar as placas tectônicas da geopolítica mundial de forma irreversível.
Ainda que tão certa quanto a nossa morte seja a dos impérios, vivemos como se eles fossem eternos. A humanidade já deveria ter entendido isso quando Roma caiu em 476, mas para uma geração cujos antepassados já cresceram sob domínio cultural, econômico e político dos Estados Unidos é difícil imaginar como seria o mundo fora dessa caixinha. Como teria sido nossa vida sem“> Rambo,“> Madonna ou“> Coca-Cola. E como será.
É só isso o que precisamos imaginar agora.
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