Todo mundo vai perder com a reforma da Previdência

Em uma semana em que Congresso Nacional é alvejado por delações da empreiteira Odebrecht, a proposta de reforma da Previdência enfrentará a sua primeira prova de fogo: o texto enviado pelo Planalto começa a tramitar na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. Espinhoso, poucos governos no Brasil se atreveram a mexer nesse vespeiro. Com medo da perda do voto, essa relíquia preciosa em tempos de negação da política, parlamentares só resolvem enfrentar as reformas necessárias quando as finanças chegaram à beira do colapso.

Da maneira como o texto foi apresentado pelo governo, todos devem perder de alguma forma. Pelo menos, é essa a avaliação do professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Wagner Balera. Mestre em Direito Tributário, Balera conversou com o The Intercept Brasil sobre a reforma da Previdência, cuja discussão ainda promete ir longe e que impactará a vida de todos os brasileiros.

Mitos, meias-verdades e muitas informações desencontradas são proferidas sobre a Previdência. Em Brasília, os burocratas não se entendem sequer nas contas para identificar o número real do déficit previdenciário. Nesse emaranhado de tabelas e gráficos, o dois mais dois dificilmente chegará ao resultado quatro. Coisa de burocrata.

Para Balera, o governo usa um argumento falso para justificar o rombo da Previdência. Segundo ele, o problema não é a arrecadação, mas que parte do orçamento da Seguridade Social é constantemente desviado para outras finalidades. O professor também criticou a postura do governo em tratar a reforma da Previdência dos militares separadamente, como se fossem um grupo melhor que o restante da sociedade. Confira abaixo os principais pontos da entrevista:

O governo tem utilizado um argumento falso quando ele justifica a necessidade da reforma previdenciária.

THE INTERCEPT BRASIL: Professor, começando com o básico, questiono: a reforma da Previdência é realmente necessária?

Wagner Balera: Eu considero que é algo absolutamente necessário. E o primeiro fundamento é que a sobrevida média do brasileiro aumenta constantemente. O sistema foi pensado para outra realidade. O que é o raciocínio previdenciário: você tá vivendo mais tempo, você vai ter que trabalhar mais. Esse é o principal motivo pelo qual uma reforma é necessária. É uma questão de dado estatístico em virtude do aumento da expectativa de vida.

A reforma também se justifica tendo em vista a diminuição da natalidade, porque a Previdência funciona com uma lógica intergeracional. A geração presente é responsável pelo financiamento das prestações da geração pretérita, e a geração futura vai financiar as prestações da geração presente.

O governo tem utilizado um argumento falso, um argumento mentiroso, quando ele justifica a necessidade da reforma previdenciária. O Estado Brasileiro – e não é esse governo aqui, nem o anterior nem o anterior ao anterior – utiliza a falsidade de que a Previdência está quebrada.

TIB: A Previdência não está quebrada, professor?

WB: Isso é uma enorme falsidade. O que é que está fazendo o Estado Brasileiro? Ele está destruindo um modelo que a nossa Constituição criou que se chama Seguridade Social. A Constituição Federal de 1988 originou a Seguridade Social, na qual integram a saúde, a previdência e a assistência. Três setores englobados numa só realidade. E a Constituição criou um orçamento separado do Orçamento do Estado para a Seguridade Social.

A União tem as suas receitas, a Seguridade Social tem as suas receitas. Então, a Previdência integra o orçamento da Seguridade Social, que foi contemplado pela Constituição com diversas fontes de receita.

TIB: Quais fontes são essas?

WB: A primeira, a mais antiga, é a contribuição sobre a folha. Você, como trabalhador empregado, paga uma contribuição sobre o seu salário. O seu patrão paga uma contribuição sobre o seu salário, e essa é a contribuição sobre a folha, que é chamada folha de salários, folha de pagamento. Essa é uma das contribuições.

Eu não posso falar assim: “A previdência está quebrada”. De fato, o que se arrecada com a contribuição sobre a folha não paga os benefícios devidos pelo INSS. Ficaria faltando dinheiro. Mas é por isso que existe a Seguridade Social, o orçamento da Seguridade Social e as despesas são da Seguridade Social, não da Previdência. É uma questão conceitual que não é da minha cabeça, é o que está na Constituição.

A Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) é um dos tributos de maior arrecadação do Brasil, só perde para o Imposto de Renda. Então, é um manancial imenso de dinheiro que o Estado brasileiro arrecada.

Entrou tanto dinheiro que começaram a desviar esse dinheiro.

TIB: E para onde está indo todo esse dinheiro arrecadado?

WB: Entrou tanto dinheiro que começaram a desviar esse dinheiro. Por isso que é falso o argumento do déficit. Porque, a partir de 1994, começaram a desviar dinheiro das contribuições sociais e continuam desviando.

Este ano, o desvio foi ampliado. Antes desviavam 20%, depois passaram a desviar 25%, e, agora, vão desviar 30% de um troço chamado DRU (Desvinculação das Receitas da União). Isso nada mais significa do que tirar dinheiro da Seguridade Social e jogar para qualquer outra coisa que o Estado queira fazer com esse dinheiro. Como é que você pode falar que o negócio tá quebrado se estão desviando dinheiro desse segmento para outras áreas? Então, esse é o falso argumento da reforma. A reforma é necessária, é imprescindível, mas não sob o argumento de que [a Previdência] está quebrada.

TIB: Qual o principal problema dessa reforma? Tem algum ponto principal de polêmica?

WB: Eu considero imprescindível a fixação de uma idade mínima para as aposentadorias. Nada explica o fato de não haver essa idade hoje. Ela só não passou em 1998, na emenda constitucional nº 20, porque o Antônio Kandir, que era deputado [PSDB-SP] naquele tempo, errou o voto.

O outro ponto importante da reforma é aquele que veda a acumulação de benefício de aposentadoria com pensão. A Previdência significa que o Estado vai conceder a você a garantia das suas necessidades básicas. A Previdência não prometeu, nem promete a ninguém, a manutenção do status. Então, se alguém já recebe aposentadoria, por que também vai receber pensão do outro? Não tem sentido. Isso é completamente impróprio em um sistema universal e solidário, como é o da Previdência.

A Previdência não prometeu, nem promete a ninguém, a manutenção do status.

TIB: Na proposta enviada pelo governo Temer ao Congresso, os militares ficaram de fora.

WB: Os militares são brasileiros como eu e você. Do ponto de vista previdenciário, assim como eu tenho direito a proteção social mínima, é isto que se deve a eles também. Uma coisa um pouco esquisita é você tratar esse grupo como se ele fosse um grupo à parte. Estou falando do ponto de vista previdenciário.

Do ponto de vista previdenciário, o militar fica velho como eu fiquei velho, fica doente como eu fiquei doente e assim por diante. Então, não tem por quê. Não pode ser tratado à parte. A reforma avança, mas ainda fica isso de excluir esse grupo como se esse grupo fosse melhor que os outros.

TIB: O que o sr. acha de os homens e as mulheres se aposentarem com a mesma idade?

WB: É uma conquista da sociedade, a igualdade do homem e da mulher. Especialmente dos requisitos para a obtenção dos benefícios previdenciários, porque não existe nenhuma justificativa técnica para terem tratamento diferenciado. Até porque isso é estatística, as mulheres vivem mais tempo que os homens.

Do ponto de vista previdenciário, o militar fica velho como eu fiquei velho, fica doente como eu fiquei doente.

TIB: O senhor chegou a falar que uma unificação das regras do regime geral e dos funcionários públicos corrigiria uma injustiça, já que hoje temos dois mundos. Que injustiça seria essa e que mundos seriam esses?

WB: O mundo dos servidores públicos é o mundo dos privilegiados. Os salários são a base contributiva deles e são a base do benefício que eles recebem. Por exemplo, se o servidor ganhava R$ 10 mil trabalhando 35 anos de serviço, que é o requisito para a chamada aposentadoria integral, ele vai continuar ganhando R$ 10 mil, o salário dele. Enquanto isso, no regime do INSS, se o sujeito ganha R$ 10 mil e o teto atual [do INSS] é R$ 5.189, ele vai ganhar, no máximo, R$ 5.189. Do ponto de vista previdenciário isso é injusto, porque cria duas classes: a classe A, que tem a melhor previdência; e a classe B, que tem uma previdência de até R$ 5.189.

Qual seria a justiça? A previdência garante as necessidades básicas. Se a nossa previdência tem um limite geral de R$5.189, ele tem que valer para todo mundo. “Ah, mas eu quero ter uma aposentadoria melhor”. Perfeitamente. Você compra um plano de previdência privada. Só você vai custear, não a sociedade toda. É nesse sentido que eu falo da injustiça.

O mundo dos servidores públicos é o mundo dos privilegiados.

TIB: O senhor acha que algumas profissões deveriam ter um regime diferenciado? Como, por exemplo, o trabalhador rural?

WB: Há dois pontos perversos na proposta enviada pelo governo. Um é esse do [trabalhador] rural. Como é que ele contribui hoje? Com um percentual sobre o resultado da comercialização de sua produção. Porque assim é a vida do rurícola. É sobre o que ele produz que ele ganha. Segundo a proposta, o rurícola vai contribuir com salário, portanto é uma ficção. O trabalhador rural que recebe salário é exceção, é o que que trabalha na agroindústria. Então é uma ficção porque está se inventando que o rurícola ganha salário mínimo, e isso não é verdadeiro, porque muitos não ganham nem um salário mínimo.

É outra realidade. Então, eles nivelam todo mundo pelo salário mínimo, e o que é pior: para esse grupo vão ser exigidas noventa contribuições. Isto é, estão chutando as aposentadorias rurais para daqui a oito anos. Escandaloso. Um negócio dessa seriedade sendo tratado a toque de caixa.

TIB: Então, o produtor rural, do jeito que está sendo discutida essa reforma, sairia prejudicado?

WB: Muito prejudicado. Eu achei um dos pontos mais perversos da PEC.

Outro agravante em relação aos mais pobres é o seguinte: como são corrigidos os benefícios em manutenção? Eles são corrigidos segundo critério de reajustamento do salário mínimo. Cada vez que o salário mínimo aumenta, aumenta nas mesmas proporções o valor dos benefícios de proteção. Esse é o critério atual. Isto não é adequado porque atrela uma realidade, que é a realidade previdenciária, a outra realidade, que é o salário mínimo. São coisas diferentes, porque não é toda vez que aumenta o salário mínimo que aumenta a arrecadação.

O governo manteve a vinculação ao salário mínimo, menos para o BPC (Benefício de Prestação Continuada). Então, mais pra frente, pode ser que o benefício que hoje é um salário mínimo, amanhã seja de 70% do salário, 60% do salário mínimo, aviltando ainda mais a situação dos pobres. Uma coisa sem pé nem cabeça.

TIB: Nessa reforma em discussão no Congresso, quem serão os maiores beneficiados, as empresas ou os trabalhadores?

WB: Todos vão perder.

TIB: Todos vão perder?

WB: Todos vão perder. É uma reforma restritiva de direitos, o que é normal quando você está em uma crise, em um caminho para cortar despesas.

Se o estado fosse ideal no Brasil, ele deixaria de desviar o dinheiro, ele não prorrogaria a DRU, mas sim acabaria com a DRU, deixaria de desviar o dinheiro. Isso sim é uma responsabilidade do Estado. Independentemente de sua cor partidária, todos os governantes têm patrocinado esse descalabro que é a DRU. Então, a coisa ideal era acabar com isso. O dinheiro da seguridade social tem que acabar na seguridade social.

(Esta entrevista foi editada para melhor compreensão do leitor.)

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